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História 
AS VIAGENS DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO E A AMÉRICA DO SUL

Charles Wilkes descrevendo a sua sensação ao entrar no porto do Rio de Janeiro

Ricardo Salvatore afirma que a América do Sul foi espaço de comprometimento norte-americano desde o início do século XIX, sendo que as investigações científicas, as quais o autor denomina como "empresa do conhecimento", foram especialmente importantes para a construção de mecanismos, processos e aparatos diversos que produziram e circularam representações constitutivas das diferenças culturais sobre a região, permitindo aos Estados Unidos criarem posteriormente uma espécie de "império informal" no continente, a partir de inúmeros textos, imagens, desenhos, pinturas e mapas. A viagem de Charles Wilkes, inegavelmente, colocou a América do Sul na órbita do conhecimento que os Estados Unidos construíam sobre o mundo.

Por várias razões a América do Sul foi alvo dos interesses e das expectativas dos europeus e norte-americanos. Assustava aos navegadores a travessia do extremo Sul do continente. Percebe-se claramente no relato de Charles Wilkes que a viagem era dividida entre o antes e o após a travessia do cabo Horn. O temor não era desmedido porque o templo inclemente e as águas agitadas contribuíam para os muitos naufrágios de que se tem notícia. Ali, a expedição perdeu um dos seus seis navios, o Sea Gull, e no Norte da América do Norte, mais precisamente quando do mapeamento do rio Columbia, perdeu o Peacock. Além disso, outras embarcações tiveram a sua estrutura abalada durante o percurso. Voltaram para a casa apenas com dois dos navios originais e mais uma outra nave que adquiriram em portos chineses.

A América do Sul oferecia portos conhecidos, seguros e era onde os viajantes encontravam o abastecimento para as suas embarcações, além do reparo, geralmente necessário, para as naves danificadas. Nas instruções dadas pelo Secretário da Marinha, a América do Sul merece destaque:

No Rio de Janeiro vocês reabastecerão e especial atenção deve ser dada aos suprimentos que sejam considerados os melhores preventivos contra o escorbuto. Você determinará a longitude do lugar (Rio de Janeiro), quanto o de Cabo Frio; depois um dos veleiros deixará a esquadra e partirá para o Rio Negro, no Atlântico Sul na latitude 41º S., com o objetivo de verificar recursos e facilidades para o comércio.

Charles Wilkes descreveu a sua sensação ao entrar no porto do Rio de Janeiro:

Assim que adentramos ao porto, nossa bandeira foi vista sobre as ondas e aquela magnífica peça de arquitectura naval, o Independence; e quando passamos por ele, nossos peitos pulsaram ao som de Hail Columbia, tocada pela banda (...) Há um sentimento de segurança ao entrar no porto do Rio, que poucas vezes experimentei em outro lugar, nem mesmo nas nossas próprias águas. As montanhas oferecem uma completa protecção contra os ventos e os oceanos. (data provável: 23.11.1838)

Assim que os navios da expedição entraram na baía de Guanabara, foram saudados pela chamada Esquadra do Brasil, que no caso se restringia a um único navio, o Independence. Em geral, a esquadra procurava garantir a segurança do trânsito de mercadorias norte-americanas no Atlântico e, por outro lado, fornecer o apoio necessário aos veleiros daquele país; permanecia no Rio de Janeiro, porto que segundo Wilkes oferecia uma bem-vinda segurança aos viajantes.

Além da baía de Guanabara, o porto de Valparaíso no Chile era considerado por muitos navegantes como um lugar seguro para abastecimento, reparos e descanso da tripulação. Era a partir da América do Sul que os viajantes seguiam rumo às descobertas que seriam realizadas no Pacífico. Apesar do apoio que os expedicionários encontravam em alguns portos, havia regiões que demandavam mapeamento, pois as cartas existentes não indicavam todos os possíveis riscos e perigos:

A atenção dos oficiais na Terra do Fogo deve ser dirigida a realizar acurados e determinados levantamentos e inspeções de baías, portos, enseadas, tanto quanto verificar ou estender aquelas realizadas pelo capitão King e ser útil aos veleiros engajados na caça à baleia tanto na ida como no regresso para os Estados Unidos (...) Proceda a partir do porto [Valparaíso, Chile] (...) a possibilidade da existência de certas ilhas e bancos de areia e se houver que se determine a sua precisa posição tanto quanto de todos os outros que porventura sejam descobertos na sua rota.

Na primeira metade do século XIX, o continente sul-americano era visto com curiosidade pelos europeus que o tinham como desconhecido. Parte dessa convicção surgiu após a viagem do alemão Alexander Von Humboldt, o Barão de Humboldt, entre 1799 e 1804, e da sua narrativa de viagem muito divulgada na Europa e nas Américas. Humboldt explorara o interior da América do Sul surpreendendo com a sua narrativa cientistas, homens do governo e interessados em geral pelo tema. No entanto, como vimos, não era apenas o interior da região que era visto como desconhecido. Partes das costas do continente careciam de um mapeamento preciso, constatação que preocupava as autoridades norte-americanas em razão das muitas avarias sofridas pelos seus navios comerciais.

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Com base no já exposto, creio ser possível sugerir que as ambições do governo norte-americano ultrapassavam os objetivos descritos na Narrative of the United States Exploring Expedition. As finalidades da viagem não se circunscreviam apenas ao mapeamento de costas e oceanos, à busca por novos domínios para o comércio e ao trabalho de cientistas e naturalistas, embora as relações e os vínculos entre comércio e ciência fossem estreitos.

Penso que a primeira viagem de circunavegação norte-americana deve ser entendida em meio às disputas das potências da época que se desdobravam em constituir determinados saberes sobre o mundo. Evidentemente, o país ou império que possuísse uma Marinha de porte, quadros treinados para uma expedição de grande envergadura (oficiais e cientistas), e o domínio de determinado cabedal técnico-científico, destacava-se como potência ou mesmo como poder emergente, reestruturando o equilíbrio de poderes da época. Com isso, podemos sugerir que, apesar de os Estados Unidos serem na década de 1830 um jovem país que construía o seu Estado nacional e expandia as suas fronteiras territoriais, o governo procurava, por outro lado, um lugar entre as potências da época.

Ao montar uma expedição exploratória de tão grande porte como a U. S. Exploring Expedition, os norte-americanos procuravam fincar a sua bandeira no mundo, competindo com os europeus, tanto em relação ao possível controle de locais estratégicos, quanto em domínio de conhecimento sobre diversas localidades do planeta. Este foi o caso da exploração de determinadas partes das costas da América do Sul, da Antártida, de ilhas do Pacífico e do Noroeste da América do Norte. Procuravam, assim, se posicionar como potência naval e científica com interesses mundiais.

Rivalizam à frente da corrida ingleses e franceses com as suas viagens de circunavegação, disputando o conhecimento e o mapeamento de regiões específicas. Procuravam registrar nos seus log books (diários de bordo) alguma "nova descoberta", conferindo louros ao capitão do navio, aos cientistas, dependendo do caso, e, por fim, ao país que financiara a proeza. Mas não apenas os países citados lançaram navios ao mar. A Espanha, a Rússia e os Estados Unidos também o fizeram. Penso que foi uma tentativa – particularmente dos russos e norte-americanos – de se posicionarem como uma espécie de players (jogadores), no dizer de hoje, no plano internacional, concorrendo com as potências européias do período pelo domínio das possibilidades do Pacífico.

Apesar do esforço posto em prática na primeira metade do século XIX, a busca dos Estados Unidos por um lugar no mundo parecia arrefecer nos anos seguintes ao retorno da expedição, pois sérios conflitos se impuseram e demandaram o esforço da Marinha. Foram eles: a guerra com o México, de 1846 e 1848, quando a metade do território mexicano foi anexada pelos Estados Unidos, fazendo assim que as dimensões territoriais do país alcançassem o Pacífico, e a Guerra Civil, que por pouco não dividiu o país, entre 1861 e 1865. Alguns dos oficiais que estiveram na U. S. Exploring Expedition lutaram na guerra contra o México. Charles Wilkes por sua vez esteve envolvido na atuação da Marinha durante a Guerra Civil norte-americana, quando lutou ao lado dos nortistas.

Todavia, logo após a vitória sobre o México e certamente fortalecidos após o seu triunfo militar, os norte-americanos puseram-se novamente ao mar com grandes expedições que, embora não carregassem a disposição de circunavegar a Terra, foram notáveis pelo êxito alcançado. O Congresso dos Estados Unidos aprovou duas viagens ao Japão, comandadas pelo conhecido Comodoro Matthew Perry. A primeira entre 1852 e 1854, e a segunda entre 1853-1855. Essas expedições tornaram-se famosas em virtude de os Estados Unidos terem sido considerados, a partir do feito, os responsáveis pela abertura comercial do Japão ao Ocidente. Logo após, com a eclosão da Guerra Civil, como já dito, oficiais e navios da U. S. Navy estiveram envolvidos na contenda. Muito do conhecimento elaborado pela U. S. Exploring Expedition serviu para informar viagens posteriores realizadas pela Marinha, instruindo de diversas maneiras tanto os militares, quanto os cientistas.

A Marinha de guerra voltou-se novamente em busca de um lugar no mundo de forma efetiva no último quartel do século XIX; porém, desde o fim da Guerra Civil, o governo procurava outras formas de alcançar o Pacífico por mar. Grandes esforços foram realizados com o objetivo de mapear a América Central e ali encontrar o "local adequado" para a construção de um canal que encurtasse a rota para o Pacífico, reduzisse os custos da empreitada e evitasse os riscos, enfrentados por Charles Wilkes, nos mares do extremo Sul da América do Sul.

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