Sistema de Lupa activo | Voltar vista normal
Lazer 
PORTUGAL

Vida de mariscador: Enterrados no areal em busca de «um lanche generoso»

Uma pitada de sal num buraco na areia vale um lingueirão, espécie de bivalve, e uma refeição entre amigos, como assumem aqueles que fazem esta atividade por desporto

"Aí há pouco lingueirão e é pequeno. O melhor está daquele lado. Podem atravessar o rio por aqui, que é areia quase sem lodo e não atasca. Até têm galochas, faz-se bem com água abaixo da canela". Se Rosa Ferreira o diz, quem é Patrício Quartel e os restantes mariscadores amadores que o acompanham para não seguirem o conselho desta "guardiã do mar" nas margens do Sado. Aos 42 anos, Rosa tem uma vida ligada à pesca, mas no último fim de semana esteve pela zona ribeirinha das Eurominas (Setúbal) como voluntária da Ocean Alive, numa campanha de combate à poluição provocada pelas embalagens de sal fino.

Manhã de sábado. A experiência de Rosa é rentabilizada numa das maiores marés do ano, propícia à captura de lingueirão, para ajudar a organizar a jornada de pesca, onde estão cerca de meia centena de mariscadores, equipados a rigor, de galochas e calças impermeáveis. Surgem curvados ou de cócoras sobre o areal, com a embalagem de sal refinado numa mão e balde na outra. Apesar da chuva ameaçar, tentam aproveitar a baixa-mar ao máximo, com pouco tempo para a conversa. Têm outras profissões, mas dizem que é a paixão pela pesca que os move e a possibilidade de garantirem "um lanche generoso".

Amílcar Silva, que assume estar ali por "desporto", mostra como se faz. Injeta o equivalente a uma colher de chá de sal em pequenos buracos com a forma de um "8". "Agora é só esperar que já aí vem", garante. Em cinco segundos o bivalve sai da toca, porque não resiste à salinidade e espirra um jato de água. "Não vale a pena, tem menos de dez centímetros, não é permitido", diz Amílcar. Já ao lado surge um exemplar maior que o mariscador desenterra da areia puxando com dedos e mete no balde.

O ritual repete-se vezes sem conta e em poucos minutos há mais uma embalagem de sal que está no fim. "Posso gastar duas ou três em cada meia hora", assume Carlos Parreira, que, tal como Patrício Quartel e Amílcar Silva, assegura estar ali apenas para garantir lingueirão suficiente para uma "petiscada" com os amigos à tarde. Nem há lugar a depuração. Os bivalves passam por uma rede, são lavados em água limpa e estão preparados para cozinhar.

"Basta ir à chapa, com sal e limão e fica uma delícia a saber a mar", diz Patrício que se deslocou de Canha (Montijo) até ao Sado apenas para "matar o vício". Uma versão transversal aos mariscadores abordados pelo DN. Nenhum estaria ali a mariscar para se dedicar à venda.

Rosa Ferreira confirma. "Negócio com bivalves é no Tejo, aqui é só para brincar e dar para o lanche. O mar é calmo e não há risco", assume, recordando os dois anos em que andou à amêijoa japónica na zona da Moita. "Tinha que ganhar para comer e fazia o que melhor sabia, mesmo arriscando a vida", justificava, sem perder de vista o foco da sua tarefa na manhã para manter a costa imaculada de plástico.

E conseguiu, apesar da estimativa feita pela bióloga Raquel Gaspar, da Ocean Alive, indicar que cada mariscador pode gastar até dez embalagens de sal por dia, sendo alguns milhares simplesmente largados pelos areais, acumulando-se pelo estuário através da marés e ameaçando o ambiente.

Diz Raquel que haverá perto de 130 mariscadores licenciados para a apanha do lingueirão e navalha no Estuário do Sado. "Se cada um deixar aqui dez embalagens dá 1300 por dia. Isso a multiplicar por muitos dias e a juntar a outro lixo, dói só de ver", acrescenta a bióloga.

Quem ouve falar a maioria dos mariscadores pode estranhar de onde vem, afinal, tanto plástico. Que sim, que guardam tudo, que levam para casa para reciclar. E perante o olhar atento de Rosa Ferreira, até conservam as embalagens vazias nos baldes que vão enchendo de lingueirão. "Não respeitar a natureza é um crime, mas, de facto, há muita gente que deixa o lixo à deriva", lamenta José Reis, enquanto alerta que nas zonas frequentadas por mariscadores "também podia haver contentores de lixo e não há. Se calhar ajudava resolver o problema".

fonte